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Oi Clara,
Desculpa te escrever assim, sem falar nada antes. Sei que você deve estar morrendo de raiva por causa do que fiz, mas acho que posso explicar...
Bem, não, pensando melhor acho que não posso explicar nada. A verdade é que cada vez que penso nisso, tudo se torna mais confuso e eu não consigo parar de ver as mesmas idéias se repetindo e retornando sempre, como um rio no qual você afunda cada vez mais fundo, sem ar, em pânico. Tenho me sentido muito mal e cada vez que acho que vou melhorar, tudo recomeça, e recomeça pior. Tento olhar pra trás na minha vida, encontrar o ponto inicial onde tudo começou a dar errado, mas não vejo. Só o que vejo é que retrocedo cada vez mais na infância naquilo que sempre parece ser a origem incompleta do problema. Aí cavo mais fundo e encontro mais, e mais, cada vez mais, como um poço de sujeira a minha espera .
Já não consigo mais acreditar em nada. Não como mais. Escondi meus poemas no armário, junto com uma garrafa de vodka. Se meus pais acharem eles me matam. Preciso conseguir dar o fora daqui logo, o mais rápido possível. Estou enlouquecendo, Clara. Dia e noite, eu sinto a febre se alastrando por meu corpo até que a pulsação acelera e o respirar pesado e convulsivo me faz doer a garganta e o pulmão.
Preciso cair fora. Ficar aqui só faz tudo piorar e o processo ficar ainda mais doloroso. Preciso de um lugar pra me recompor ou afundar de vez sem levar os outros comigo.
Gostaria de dizer que foi por isso, Clara, que te evitei aquele dia e dizer que foi pra te proteger, mas seria mentira. Só o que sei é que foi algo mais confuso, mais profundo, e que eu tenho cada vez mais medo de remexer.
Não peço nada de ti Clara, nada, só gostaria de poder ser capaz de te dizer algo, de ao menos me explicar. Não te afasta de mim agora, Clara, é só isso que eu queria, mas também queria que você se mantivesse longe e me deixasse em paz para tentar pôr em ordem as idéias. Só o que sei é de minha ânsia desesperada, que a princípio eu pensei ser por você, mas que hoje já não tenho mais certeza nem sei mais de nada.
Eu não sei o que faço, Clara. Caminhei trezentos anos por um labirinto e o único lugar que cheguei foi num poço do qual não consigo mais sair agora. Caí. Caí feio, me machucando muito, e não consigo mais subir as paredes. Só o que sei é que não quero levar vocês todos comigo e que provavelmente jamais terei força para sair.
Queria poder dizer que te amo. Mas nem isso mais tenho certeza. O mundo tornou-se uma mera dúvida e ilusão, que me leva a nada. Afinal o que é amar? O que é viver? Pensar? Nada. Não são nada. São meras palavras, inventadas pela boca do homem que, por sua vez, também não significa nada. Não sei o que tenho, nem sei se tem uma resposta ou solução. Só o que sei é que o que estou atrás é de algo mais, algo que não é só meu, mas sim um mal de toda a humanidade. Somos um amontoado de defeitos, essa é a verdade, e a única coisa que me faz sentir melhor hoje em dia é o pensamento triste de que seria melhor apagar a humanidade e deixar outra espécie começar do zero.
Ah, sim. Aí outra vez me pego pensando em mim, você, tudo que houve, o frio, e começo a chorar e clamar por minha própria morte, de preferência rápida e indolor.
Começo a me achar um covarde. Sim, um covarde, como meu pai sempre me disse. Gostaria que fosse isso, ao menos seria uma resposta.
Me escreve
Anacreonte
Anaca,
Realmente não sei o que dizer, nem sei se posso realmente compreender tudo. Desculpa não te escrever uma carta longa com a tua, e por ter demorado quase um mês pra respondê-la. Aguardo uma nova carta sua, ou que você venha me ver novamente.
Só escrevi mesmo pra dizer que estou aqui.
Clara
Clara,
Oi. Recebi sua carta, como um morto recebe sua condenação à vida. Não soube o que pensar. A princípio adorei, depois tive medo, aí odiei, aí chorei de alegria, aí senti tudo isso ao mesmo tempo.
Minha cabeça continua ruim, mas agora parece que há uma espécie de zumbido, um colchão que amortece tudo e ameniza as dores. Você me faz sofrer. Me machuca mais do que tudo no mundo, mas ainda assim é o único motivo pelo qual agora vivo e prossigo com minha existência, que tanto anseia um fim.
Quero rever-te (um reencontro?) mas sei que é impossível, uma vez que não tenho nada que possa te dar. Há um mês atrás me acharia o mais desprezível dos homens, mas hoje a humanidade já tornou-se uma idéia abstrata e sem significação para mim. Ainda assim não consigo deixar de amá-la, e sofrer por querer aproveitar ao máximo cada minuto de vida e convencer a mim mesmo que valerá a pena viver o próximo, sempre evitando olhar os que se passaram.
Tô arranjando um local legal pra viver por uns tempos, ninguém sabe nada, por favor não comente. Você ainda vê os outros? Às vezes sinto saudades deles também, mas logo esqueço. Meus dias são estranhos, às vezes passo o dia inteiro agoniado, contando obsessivamente cada segundo que se arrasta e se recusa a mover o relógio. Outras vezes simplesmente me sento em meu quarto olhando as paredes, e fico assim até o escurecer. Quando vou dormir nem lembro o que se passou no dia, e quando acordo não lembro dos sonhos nem dos dias anteriores. A única coisa que sei é que tenho dormido pouco e de forma muito agitada. Tenho muitos pesadelos, não como os de criança que nos assustam com monstros ou a visão da morte. Esses que tenho tido são muito piores pois, ainda que no outro dia nada guarde deles a não ser a sensação que me provocaram, sei que são sobre coisas banais e sem sentido, mas que me angustiam profundamente.
Sofro. Sofro, Clara, sofro por uma paixão por algo. Algo indizível, inexprimível e, até o momento, inatingível. Sei que é uma paixão, não só por você, mas mais.
Sofro e amo, Clara
Anacreonte
Anaca,
Não sei se tua carta pareceu esclarecer ou piorar um monte de coisas que pareciam confusas. Também de amo, da mesma forma que mencionaste em tua carta. Estou trabalhando todas as noites e dormindo de manhã, a grana anda curta por aqui. Mas já que você tem meu endereço não custa nada dar uma passada por aqui qualquer dia desses à tarde para nos revermos.
Beijos
Clara
Anacreonte,
Desculpa o que aconteceu. Preciso falar contigo urgente, vem aqui de novo. Deu tudo errado. Sei lá, é tudo uma merda às vezes. Você demorou tanto tempo pra vir e quando veio aconteceu essa merda toda. Desculpa, sério, eu não tinha planejado isso.
T amo
Clara
Clara,
Arranjei o lugar pra me mudar. Infelizmente só vai estar vago daqui a dois meses. Enquanto isso estou tentando voltar lentamente à vida. Essa semana voltei a escrever. Fiz dois poemas, bem sofríveis e ruinzinhos, confesso, mas pelo menos estou tentando recomeçar. Estou guardando eles junto com tuas cartas, como prometi que faria.
Tudo isso anda me tomando muito tempo e peço desculpas por ter que sumir e não poder falar contigo por algum tempo. Quando eu estiver mais folgado eu passo de novo por aí. Enquanto isso, vou pensando naquela quinta-feira. Acho que talvez seja o destino que faça duas pessoas se encontrarem mas as impeça desse modo de continuarem juntas. Eu não sei, não tenho a mínima idéia, e já começo a me perguntar se eu quero realmente descobrir ou entender o que isso tudo é ou significa, se é que significa algo.
Anacreonte
Clara,
Te amo. Te amo mais do poderia exprimir ou escrever. Não sei porque por tanto tempo isso pareceu tão nebuloso e difícil de enxergar.
Estou indo aí semana que vem. Vou na quarta, assim poderemos evitar a quinta-feira dessa vez. Estou me mudando. Tenho milhares de planos e idéias, mas nenhuma certeza ainda. Minto, uma única certeza eu tenho, as únicas coisas das quais jamais me separarei são da minha garrafa de vodka e da caixa que escondo junto, onde guardo meus poemas e tuas cartas.
Beijos
Anacreonte
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