Sobre o autor Sobre o autor
Pé de Buceta Buceta Monstro Casa das Bucetas Inferno de Bucetas: Paraíso
A doce arte de Nana Caribenha
Mesmo em noite quente há coisas piores que cerveja choca
Mergulhando no ar
Deep into the Air
Blog Spectro Editora
Bukowski - Vida Desalmada
Próximo capítulo

Capítulo anterior

10


O corpo cansado, dolorido. Chego em casa. Minha esposa espera, já há bastante tempo talvez. Não sei o que pensar, estou confuso, confuso como nunca antes. Penso no dia de hoje, eu fora o dia inteiro, enquanto ela ficava aqui, sozinha, em nossa casa.

Penso no que fiz, no que deixei de fazer. Me pergunto se há algo do qual me envergonhar ou arrepender. Em cima das mesas os envelopes registrando "Ilmo Sr. Anacreonte von Giq". São todos contas, todos, que me abatem e sufocam, embora eu saiba que mais dia menos dia arranjo a grana e pago, daí tudo bem. Entro na sala, cabisbaixo eu digo:

- Oi.

- Oi. Onde você esteve?

Olho pra Lúcia. Linda, simplesmente linda. Estamos juntos há um ano e, porra, foi o ano mais feliz da minha vida. Tenho vinte e cinco, não é muito, mas acho que já é o suficiente pra se aprender a ter medo da vida. Não sei porque hoje, justo hoje, que seria nosso dia, arranjei uma desculpa qualquer e brigamos. Saí de casa, disse que já voltava, chorávamos ambos. Isso foi ao meio dia, agora são quase sete horas. Lúcia tem três anos a menos que eu. Tem ainda aquele brilho nos olhos, das pessoas bebem diretamente da essência da vida, e está sempre, sempre ao meu lado, sempre me apoia e nunca, nunca mesmo me deixa esquecer que me ama, da forma mais pura, sincera e ingênua que pode existir.

- Estive por aí. Fui na praia, visitar uma pessoa.

- E como foi?

Olho pra ela. Seu olhar é de tristeza. Seus olhos inchados mostram que continuou chorando depois que parti. Eu me pergunto como é possível que alguém tão inseguro e descuidado como eu possa merecer alguém como ela. Seu olhar me diz mais e me dói mais do que qualquer outra coisa que se poderia dizer ou fazer. Abaixo a cabeça, desvio o olhar, evito chorar. Quando foi afinal que me transformei num canalha sensível. O que mais dói em seu olhar é sua certeza de que vou magoa-la mais ainda, mas mesmo assim insiste em ir em frente.

- Não sei. Não a vi.

- A pessoa não estava?

- Não sei. Quando cheguei na porta da casa, reparei que a casa toda estava fechada. Não tive coragem, não sei, acho que sempre tive medo de casas fechadas.

Ficamos em silêncio. Acho que ela tentava ainda assimilar o conteúdo do que eu dizia. Talvez eu tentasse ainda assimilar o que eu dizia, queria e pensava. Nosso olhar se encontrou, perdido, olhando fundo, tentando encontrar no outro alguma sombra de verossimilhança com aquilo que, até de manhã, éramos. Fui na sua direção, que parada, simplesmente deixou-se envolver em meus braços e começou a chorar. Chorar muito. Quis chorar também, chorar muito também, mas as lágrimas simplesmente não vieram. Talvez eu fosse finalmente insensível. "Te amo, te amo, te amo" passei a repetir-lhe. Ela me beijou. Me beijou por muito tempo com uma espécie de carinho que não pude entender. Eu a amava, só agora eu conseguia ver claro, mas sim, eu a amava, amava mais do que qualquer coisa que tive ou irei ter na vida e me pergunto por que, por que só agora, depois de um ano juntos, é que fui descobrir isso? "Te amo" ela disse também, tão baixo que saiu quase como um sopro, inaudível. Vieram, então, as lágrimas, pra mim também.

Ficamos um tempão abraçados, em pé na sala, até que paramos de chorar e eu disse:

- Vamos pra quarto. Vamos dormir...

- Não.

Eu não soube o que ela dizia com aquele não. Só sabia que de repente milhares de hipóteses e medos passaram por minha cabeça. Abracei-a com força.

- Nós vamos pro quarto sim, mas não vamos dormir não. Não hoje, não tão cedo.

Beijou-me de novo, me olhando com aquela cara de sacanagem que só ela sabia fazer. Comecei a rir, talvez mais por alívio depois de tanta tensão, do que pela graça em si. Abracei-a e fomos nos beijando pro quarto, chutando tudo que aparecia no caminho.

A luz estava apagada. Antes de fechar a porta ainda pensei em como podia ter duvidado de que a amasse tanto assim. Ela era o sol. Era a vida. Ela era tudo que me movia e fazia ver que ainda valia pena, valia a pena viver. Eu sabia que sem ela eu jamais seria feliz novamente. Naquele momento descobri isso tudo. Naquele momento, apenas doze horas antes de ela bater o carro contra um caminhão e nunca mais nos revermos.

   
  Topo da página