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Blog Spectro Editora
Bukowski - Vida Desalmada
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19


Hoje, assim como em todas as manhãs, algumas horas após ter eu ido dormir, toca o telefone. Toca. Toca. Toca assim, sem mais nem menos.

Eu olho no relógio, atordoado pelo sono e pelo cérebro-ainda-embriagado e constato, sem surpresa nenhuma, que é exatamente o mesmo horário da madrugada em que me ligam todos os dias: dez e quinze.

Viro pro lado de novo. Tentando ignorar a insistente campainha, sentindo o enjôo no estômago e a vertigem da ressaca.

Graças a deus (o deus que não existe e no qual não acredito, fique claro), tenho uma secretária eletrônica. Isso impede que o aparelho fique tocando ad infinitum pois, após alguns toques ela atende e o sujeito do outro lado da linha desliga. É, de fato é para isso que servem as secretárias eletrônicas, não para deixar recados, mas sim para evitar que o telefone toque a manhã inteira.

Aí, enquanto me reviro, misturando realidade, sonho e delírio, voltando a dormir, bate um certo arrependimento impotente misturado com medo. Começo a imaginar quem teria ligado. Seria notícia ruim? Boa? Engano? Provavelmente esse último, o que me dá um certo consolo e alivia minha consciência por não ter atendido.

Mas aí entra o sonho e delírio e começo a imaginar que não, que certamente era a mulher da minha vida, que estava ligando para sussurrar gentilmente ao fone:

- Alô? Anacreonte? Quero fuder contigo! Quero passar aí e quero que você arranque minha roupa e me deixe te mostrar que o mundo não é assim tão ruim!

Aí eu me excito, e o sonho descamba por alguns minutos para uma viagem erótica pela ilha das virgens ninfomaníacas. Aí volta de novo o sonho com o telefone, e eu me remexo inquieto na cama, incomodado pelo sono intranqüilo.

Começo a pensar, em sonhos, no trabalho e em todas minhas obrigações. Começo a pensar que foi bom não ter atendido, pois se fosse realmente a mulher da minha vida vindo me conhecer (num sentido vulgar e também no bíblico), eu não iria ao trabalho depois, e seria despedido, e beberia mais ainda e acabaria minha noite me enfiando embaixo de um carro na estrada.

Depois começo a pensar em todos meus medos e inseguranças, e no quanto eu certamente decepcionaria a mulher da minha vida se ela viesse me ver hoje. Minha incapacidade me frustra, tão habilmente implantada em mim por anos de professores ranzinzas em colégio de freiras e por mães, pais, tios, presidentes, diretores, chefes e todas espécie de seres em quais não devemos confiar. Minha frustração me faz remexer-me de novo na cama, suando. E o sonho muda agora de versão.

Imagino que atendi ao telefone e era uma má notícia. Uma não, várias. O sonho começa a se repetir, repetir, piorando em cada versão a notícia dada. Primeiro é uma morte, a maior parte das notícias eu não lembro mas lembro que a primeira é sempre uma morte. Não uma morte na família próxima, ou de um amigo, mas sim de um conhecido ou parente distante, dos quais às vezes nunca ouvi falar, mas que fatalmente me obrigará a sair da cama e começar a tomar uma séria de ações e providências estúpidas, arruinando meu dia. Meu primeiro pensamento é sempre um desapontamento por não ser eu a ter morrido.

Em seguida a coisa evolui. Morte de amigos. Acidentes fatais. Morte de mulheres que sempre amei embora nunca chegasse a dizer isso a elas. Doenças terminais. E o único desejo e pensamento comum que acompanha a todas essas versões diferentes do telefonema é a vontade de que seja eu quem tenha morrido.

Por fim acordo, suado, cansado, assustado, acovardado e enjoado. Olho no relógio e já é quase uma. Estou atrasado. Troco de roupa e saio correndo para ir cumprir meus deveres com a dura e imponente realidade. Sem banho. Sem escova de dentes. Sem lavar o rosto. Sem almoço ou dejejum (coisa que só vou ter às seis da tarde). Só uma ocasional mijadinha de vez em quando.

No ponto de ônibus me pergunto: Quem seria afinal que me liga todo dia às dez e quinze da madrugada? Decido que amanhã vou tentar atender o telefone, mas quando subo no ônibus eu já intuo que não, que não serei capaz ou que talvez amanhã não toque o telefone. Acabo concluindo que provavelmente às dez e quinze ele vai tocar de novo, mas sei que vou estar com muito medo e muito sono para poder conseguir atendê-lo.

   
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