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Na Laranja Mecânica
A Potência Humana
 

Na Laranja Mecânica

Eu já acertava a féria do dia quando se levantaram gritando para ninguém se mexer. Vi do meu banco que tinham dois mais na frente perto do motorista e um mais aqui ao meu lado. Um magrinho meteu uma nove milímetros no quengo do Xavier, enquanto o mulatinho corria nervoso pelo corredor com uma doze de cano cerrado. O que tinha cara de garoto se encarregou de me levar a grana, que eu dei com todo prazer. Era a terceira vez em dois meses que o nosso carro era assaltado e já estava virando rotina. Dessa vez, eram uns caras diferentes, não pareciam ser daquela área ali, não. Eu tinha passado para trocador da linha 434 desde o começo do ano e já vinha trabalhando com Xavier desde julho passado, apesar de conhecê-lo desde a greve de maio. Era um serviço legal, exigia um pouco da cabeça nessas horas, mas eu geralmente conseguia me divertir. Meu parceiro não me incomodava, principalmente porque trabalhava calado. Trabalhando, era um cara que só abria a boca para dizer o essencial. Às vezes eu não gostava porque queria comentar uma estória engraçada, um bafafá, e aí não tinha jeito de fazer o Xavier se empolgar. Ficava mudo para só dizer alguma coisa quando chegávamos na garagem.
Eu tirava uma grana a mais quando era dia de jogo, no domingo. Apesar de me aporrinhar com a gritaria e a molecagem que se fazia na ida e na volta do Maracanã, eu fazia eles passarem juntos na roleta, debicado ou então descer por trás cobrando por fora metade da passagem. Foda era quando saía briga. Tinha que tomar conta do dinheiro porque sempre tinha uns espertinhos querendo levar vantagem da zona pra levar a féria. Uma vez, um crioulo bateu tanto num moleque que voltava com a camisa do Vasco que tivemos que parar numa guarita da PM para ver se eles davam jeito nos caras. Levaram o negão para o distrito e o garoto para ser remendado no Souza Aguiar. Outro dia foi pancadaria generalizada na volta do Fla-flu. Quebraram a janela de trás com pedrada e deu a maior merda para explicar na garagem.

Caloteiro tinha um punhado, mas eu não esquentava para não arrumar confusão nem inimizade. Só xingava quando o vagabundo descia perto do fiscal, mas era mais para marcar presença. Bêbado e velha também perturbavam. Principalmente as que não aceitavam que eram velhas o suficiente pra entrar pela frente. Xavier era um cara legal e até deixava. Mas não, subiam por trás aquelas múmias de colar, penduricalhos, bolsa de festa, o escambau da rainha. Sempre enrolavam para subir e arrumavam confusão com o troco. Diziam que tinham dado mais dinheiro, que eu roubava, uma aporrinhação. Dos bêbados eu gostava. Entravam gritando, se engraçavam com as moças, tropeçavam nos ferros, babavam, cuspiam no chão, isso quando também não vomitavam. Eu vou confessar que eu tenho a maior consideração por eles. Ninguém entende bêbado, essa é que é a verdade. As pessoas criticam, mas têm inveja dos bêbados, não dos alcoólatras, mas dos bêbados, porque eles se dão a liberdade, quando bebem, para fazer o que querem. A cachaça dá coragem aos homens. A cachaça é a passagem de ida para a loucura. A cachaça é a coragem dos fracos.

À noite, era o bicho solto. Mês passado, entraram duas mulheres na Avenida Atlântica, toda arrepelhadas de porrada, com braço cortado de gilete e um baita negão na beca xingando as meninas de tudo quanto era nome para o ônibus todo ouvir. Na Mem de Sá, um outro cara se irritou e tomou as dores das garotas que já iam descer. Pra quê? O sujeito apanhou feito ladrão. Eu fiquei com pena do otário e quis deixar o cara na Cruz Vermelha, mas o Xavier, que já estava puto e não gostava desse tipo de babaca valente, falou que se ele quisesse, que descesse. O cara seguiu a sugestão e saltou xingando o Xavier, dizendo que ele não tinha Jesus no coração, mas desceu. À essas horas tem que se garantir muito para comprar uma briga.

O lado legal desse emprego era ver as minas passeando, brincar com os travestis na Glória, as crianças com sono indo para a aula de manhã, ver o mundo passando que nem televisão pelas janelas do carro. O salário era uma merda, mas eu gostava do serviço. O Xavier, eu sempre vi que não estava satisfeito. No jeitão calado que ele tinha eu percebia suas reclamações. Ele se metia muito com política e eu achava que qualquer dia desses ia ganhar uma azeitona na idéia por ficar falando mau da empresa e agitando greve que ninguém queria no sindicato. Falava que lá tinha muito pelego e que a gente precisava fazer alguma coisa para mudar a vida, para ganhar mais, para ser mais ouvido pelos patrões.

Na campanha salarial que acabou na greve de maio do ano passado foi que eu vi que o Xavier era um cara revoltado. Brigou com um monte de gente do comando de greve porque ele achava que os piquetes estavam frouxos de propósito. Acabou sendo preso e aparecendo na televisão apanhando dos pelegos. Ele insistia para eu participar da luta, como ele chamava, mas eu via que isso não ia adiantar de nada. Até porque, tirando o salário, com o resto eu estava satisfeito. Ele tentava convencer o pessoal para ficar ao lado dele, mas ninguém se interessava, não era nem medo, mas falta de vontade de participar mesmo. Depois da humilhação que passou na greve, Xavier se cansou e ficou na dele. Estava há quinze anos na empresa trabalhando de motorista. Já não era mais garoto e fizeram questão de lembrar isso a ele. Xavier ficou mesmo é com medo de ser mandado embora por causa de agitação. A mulher estava se separando e ele tinha que provar ao juiz que tinha condição de ficar com a filha. Não podia se expor. Guardou consigo, então, toda aquela amargura e ficou um cara fechado, mas de quem eu gostava muito. Me tratava por filho, com carinho de pai. Me dava conselhos que eu não sabia ouvir direito e implicava com minhas unhas compridas. Dizia que era coisa de veado. Na empresa ninguém o agüentava, talvez até por isso tivessem me colocado para trabalhar com ele.

Naquele dia do assalto eu vi que ele tinha acordado com o pé esquerdo, apesar de ser canhoto. O juiz tinha dado a posse da filha para a mulher e ele sabia que não teria condição nenhuma de criar a menina. Mas e o orgulho? Tentou se conformar pensando que aquela era a decisão mais acertada mesmo. Sentou em seu banco, arrumou o espelho retrovisor de modo que pudesse ver os passageiros e a mim. Fez sua oração como de costume, um "vamos lá, garoto" com pouco ânimo e saímos.

E quando os caras anunciaram o assalto, eu vi que fiz bem em não colocar a féria no cofre, senão arriscava levar um pipoco por causa de dinheiro dos outros. O com cara de garoto botou, então, a grana num saco e ficou vigiando a parte de trás do carro. O mulatinho mexia pr'um lado e para o outro a doze como se fosse para intimidar, mas era nervosismo. Esperava com calma que a meia-dúzia de gatos pingados desse o que tinha para os marginais e torci para ninguém bancar o babaca valente. Teve uma bagunça lá na frente e eu senti que não havia dado em nada minha torcida. O ônibus parou quase ao mesmo tempo que eu percebi que o valente era o Xavier. Fiquei que nem bobo sem saber o que fazer. Não dava para ir até lá. Era uma gritaria dos diabos. "Ninguém sai desse carro enquanto vocês não devolverem tudo que pegaram" e eu pedindo calma enquanto os passageiros abaixados não entendiam o por quê daquilo.

"Meu tio, qual é a tua? Tá a fim de levar um teco? Abre essa porta e liga esse carro logo senão vai levar bala!" O mulatinho, de sobressalto, voltou para acudi-lo, Xavier ficou de pé, o magrinho se assustou e descarregou. Um, dois, três tiros. "Velho filho da puta!" gritou irritado como quem não contava com aquilo. Foi até o painel e abriu as portas sem saber se era para ter matado o motorista. Desceram correndo e fugiram a pé se metendo pela Mendes Tavares. Os passageiros, assustados, correram para ver o que tinha acontecido. Uns choravam, muito nervosos, e eu ainda sem entender nada direito. Xavier estava caído de costas, ainda vivo, com um tiro no braço e a barriga aberta. Olhava fixo para o santinho que tinha pendurado no retrovisor no primeiro dia de trabalho. Chamaram a polícia e depois de meia hora chegou a ambulância. Xavier agüentando firme, todo ensangüentado e eu feito um imbecil, sem saber por que aquilo. Tudo já havia acabado, afinal. O assalto, o salário, o sindicato e os jogos no domingo.

2004-02-19 11:08:27