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O
MINEIRO QUE TRAZ FELICIDADE
por
Regina Carvalho
Em 1994 defendi minha dissertação
de mestrado, intitulada O AMOR E O AMENDOIM (das características
poéticas da obra solo de João Bosco à leitura
da MPB), no programa de Pós-Graduação em
Teoria Literária da UFSC, sob orientação
da Profa. Dra. Maria Lúcia de Barros Camargo. Os três
anos de estudos e de pesquisa para a consecução
desse trabalho acadêmico fizeram com que as pessoas com
quem convivi na época me identificassem totalmente com
João Bosco. Se encontro alunos que não via há
anos, me dizem que cada vez que ouvem Bosco se lembram de mim,
o que, se me parece meio injusto para com o artista mineiro, me
é afetivamente gratificante, é claro.
Na dissertação analisei
as canções do compositor de Ponte Nova, cidadezinha
da Zona da Mata de Minas Geraes, a região mais pobre de
Minas, próxima à Bahia. Analisei, porém,
apenas as canções em que ele havia feito letra e
música, e a partir única e exclusivamente da escuta
. Considerava (e ainda considero) que, diferentemente do poema
chamado de erudito, que se sustenta sozinho, elaborado que foi
para isso, a letra de música só se realiza ao ser
cantada, e é aí que deve ser analisada, em execução,
levando-se em conta os sentidos que adquire com as modulações
de voz do intérprete e mais o arranjo e a entonação
que lhe são emprestados pelos instrumentos ou até
pela ausência deles. "João do Pulo", por
exemplo, que trabalha a mutilação que o acidente
rodoviário causou a nosso atleta campeão olímpico
é cantada a capela, isto é, só com a voz
humana, sem nenhum instrumento, e isso lhe dá incrível
pungência, pela solenidade que lhe empresta e pela exposição
aguda da dor.
Fiz todo um levantamento da obra
de João Bosco de Freitas Mucci, nascido aos 13 de julho
de 1946, sob o signo de câncer, portanto. E fiz ainda todo
um levantamento de suas parcerias, de sua vida. Assisti a vários
de seus shows , às vezes duas ou três vezes seguidas,
comparando a reação do público ao mesmo espetáculo,
reação nem sempre igual, dependendo da data e do
acaso da freqüência. Visitei-o no camarim após
os espetáculos, num exercício consciente de tietagem,
que foi bastante proveitoso para entender certos aspectos da carreira
do artista. Pude vê-lo exausto, depois de um espetáculo
particularmente estressante - som que deu problemas, público
meio difícil, calor em excesso - ouvindo pacientemente
abobrinhas de adolescentes tolas que nada sabiam de sua obra,
ou de peruas curiosas sobre seu rompimento com Aldir Blanc, acontecimento
já bem antigo. Sorridente, simpático, embora não
muito expansivo, como quem se submete a um ritual não muito
agradável, mas necessário.
Realizamos duas entrevistas, em
que detalhes deliciosos de seu processo criativo foram expostos,
dos quais o mais interessante foi o relato detalhado de como compôs
Dodô (cd Na onda que balança, 1994) a partir da escuta
de uma composição de Miles Davis para um enteado
de Miles, menino americano com o nome francês de Jean-Pierre,
composição que Davis baseou em uma cantiga de ninar
francesa chamada Dodo. A partir daí Bosco narra uma fantástica
aventura pelo universo da criação de um artista
de um talento extraordinário, aberto a qualquer influência
e sopro da inspiração.
A cada espetáculo assistido,
maior a admiração pelo talento inigualável
de um ser humano cuja sensibilidade musical o leva para os caminhos
mais inesperados da chamada world music, pois é assim que
o classificam em nível internacional. Da carreira de suprema
importância na MPB, ficam marcos inesquecíveis da
história de nosso país: O bêbado e a equilibrista,
O mestre sala dos mares, Tiro de Misericórdia, De frente
pro crime e tantos outros. Ficam algumas obras-primas do amor
romântico: Papel Maché, Jade, Memória da Pele,
Desenho de Giz, Das Dores de Oratórios, O Amor quando acontece.
Ficam algumas letras absolutamente geniais: Jade, Granito, Corsário,
As Minas do Mar
Algumas só dele, outras em parceria.
Fazer o acompanhamento exaustivo
de uma carreira desde sua primeira gravação (LP
João Bosco, RCA, 1972) até a última, a de
número 20, (o cd Na Esquina, Epic, 2000), esclarece muitos
aspectos do crescimento de um violonista autodidata que "desafina"
o violão para tocar da forma incomparável como executa
o instrumento - a ponto de dele conseguir tirar peças como
o Bolero de Ravel, transmudada para o jeito característico
de Bosco: Bolerando com Ravel. Mostra mais ainda: mostra o desenvolvimento
de um cantor sem grandes recursos, dono de uma voz de pequena
extensão, até chegar a um intérprete que
faz o que quer com a voz, a ponto de torná-la mais um instrumento
- passa da entonação normal para o falsete como
quem brinca; modula, torce, empresta-lhe ironia, pranto, angústia
, malícia
O amigo e padrinho de casamento Scliar,
o pintor, dizia que João é um trabalhador incansável.
Sem dúvida ele o é: tudo que no show parece fluir
com a maior espontaneidade e leveza, é fruto de um treinamento
paciente e tenaz. Bem pensado, bem ensaiado, com repertório
da maior qualidade e músicos de excelência - caso
contrário, o show terá apenas João, banquinho
e violão, e não se precisa de mais nada. Sairá
perfeito.
O último show de João
Bosco em Floripa se deu no dia 30 de novembro de 2000, uma quinta-feira.
Casa lotada, como sempre. Choveu forte durante quase todo o dia,
mas na hora do espetáculo garoava - molha bobo persistente
e chata. Duas ou três vans pararam na frente do CIC, trazendo
pessoas de outras cidades para vê-lo.
João é discreto
na sua forma de divulgar seu trabalho: faz shows quando há
disco novo, raramente em outras épocas. Do cd novo, a ser
divulgado, Na esquina, quatro ou cinco composições
do programa. As outras são de épocas variadas, escolhidas
e elencadas com a minúcia cuidadosa de sempre. Alterna-se
o novo com o conhecido, o romântico com o sarcástico,
o brincalhão com o sério, de modo que o espetáculo
corra sempre animado. E assim ele é: João seduz
o público e o mantém seduzido, refém de seu
carisma e de seu talento, das dez até quase meia-noite,
incluindo-se aí o bis obrigatório. Em alguns momentos
faz apresentações, conta piadas, utiliza seu conhecido
agradecimento em sotaque mineiro ( 'brigado gente") que arranca
risadas deliciadas do público, que está ali para
isso - para ser cúmplice dele naquilo que lhe é
característico, deliciosamente, maliciosamente característico.
Os músicos entram primeiro,
num palco quase às escuras: percussão, como sempre
aquele que acaba se destacando mais dentre os músicos da
banda, pois na MPB a percussão é da maior relevância;
bateria, teclado, guitarra e baixo. João entra em seguida,
expondo o conhecidíssimo perfil em que sobressai o nariz
do descendente de árabes. Sobre ele incide o primeiro holofote.
Ele declama, entonação normal, de quem conversa:
"Se disparada pelo amor/
palavra bala/
Na boca do ditador/ toda palavra cala/
Quando não se quer ouvir/ palavra mala/
Quando não se faz sentir/ pobre palavra rala".
São versos de Mama Palavra,
parceria de João e de seu filho Francisco, no cd Na esquina,
o segundo que fazem juntos. O primeiro, As Mil aldeias, não
é muito bom, decepcionou bastante. Mas este mostra um grande
avanço na parceria, está realmente bom. Todos os
boscomaníacos que conheço gostaram - e somos muitos,
persistentes, fiéis... e por isso exigentes, às
vezes cruéis na crítica. Detestamos As mil aldeias,
apesar da competência musical de João. Cochichamos
uns para os outros que este caminho familiar não iria dar
certo, tememos pelo ídolo. E o ídolo, sempre à
frente, tratou de nos desmentir. E nós não nos zangamos,
não: somos masoquistas neste ponto, adoramos que ele faça
isso conosco
Na seqüência vamos
ao cd Zona de Fronteira (Columbia, 1995), obra-prima composta
com Waly Salomão e Antônio Cícero, revisitar
Holofotes, uma composição pós-moderna:
"dias sem carinho/ só
que não me desespero/
rango alumínio/ ar, pedra, carvão e ferro/
eu lhe ofereço/ essas coisas que enumero/
quando fantasio/ é quando sou mais sincero."
( E eu cochicho para a amiga que
me acompanha: adoro esses dois versos - 'quando fantasio é
quando sou mais sincero'
Tá tudo aí!)
E de vários lps e cds renascem
lindamente Ronco da Cuíca, Odilê Odilá, Zona
de Fronteira/ Metamorfose, Ditodos, Nação, Na esquina,
Desenho de Giz.
Desenho de Giz, por exemplo, parceria
com Abel Silva, tantaliza o público romântico, capaz
de segui-lo cegamente até nos aiaiaiai da dor de amor:
"Quem quer viver um amor/
mas não quer suas marcas, qualquer cicatriz
A ilusão do amor não é risco na areia/ é
desenho de giz
Eu sei que vocês vão dizer/ a questão é
querer, desejar, decidir
Aí diz o meu coração/ que prazer tem bater/
se ela não vai ouvir
Aí minha boca me diz/ que prazer tem sorrir/ se ela não
me sorrir também
Quem pode querer ser feliz/ se não for por um bem de amor
Aiaiaiaiai, aiaiai, aiaiai
Eu sei que vocês vão dizer/ a questão é
querer, desejar, decidir
Aí diz o meu coração/ que prazer tem bater
/ se ela não vai ouvir, aiaiai
Cantar, mas me digam pra quê/ eu vivo a sonhar/ só
querendo escapar à dor
Quem pode querer ser feliz, se não for por amor
"
E daí se seguem Enquanto
Espero, Memória da Pele, Coisa Feita, Benguelê/ Incompatibilidade
de Gênios, Granito/ Jade, Quando o amor Acontece, Corsário,
Linha de Passe
E em Benguelê ele retoma homenagem
antiga à companheira de início de carreira, Clementina
de Jesus, Quelé, que o acompanhou pelo Brasil no Projeto
do SESC, Pixinguinha Seis e Meia. Com a entonação
de preta velha de Quelé , "Carreiro bebe/ caminheiro
também bebe/ senhor mandou dizer/ que não ensina
boi bebê" vai entrar como música incidental,
na introdução.
De canções tão
conhecidas quanto Incompatibilidade de Gênios (Doutor/ jogava
o Flamengo/eu queria escutar/chegou/ mudou de estação/começou
a cantar) ou Linha de Passe (
Meu pirão primeiro/
é muita marmelada/ puxa-saco, cata resto, pato, jogo de
cabresto/ e a pedalada quebra outro nariz/ na cara do juiz/ Aí,
há quem faça uma cachorrada/ E fique na banheira/
ou jogue pra torcida/ feliz da vida
) João consegue
tirar sentidos e arranjos novos, insuspeitados. Para o bis, exigimos
seu retorno batendo palmas ritmadas, como quem ordena, outro ritual
costumeiro. Ele executa então o que lhe pediam aos gritos:
Papel Maché (gosto mais do equívoco da primeira
gravação: Papel Marché, bem mais significativo),
O Bêbado e a Equilibrista, mas começa por uma composição
nova: Passos de Amador, "pois deixa no teu coração/
um tolo entrar", versão de João e Chico para
Fools rush in, de Bloom e Mercer.
No meio do espetáculo uma
fã indócil solicitava em altos brados que ele cantasse
Papel Maché, seu maior sucesso romântico. Ele tergiversou
simpaticamente: "Calma, a gente chega lá. Mas tem
que ir com calma, conversando devagar, sentando numa mesinha,
tomando alguma coisa, se conhecendo melhor, depois a gente chega
lá
" A analogia entre a sedução
musical e a amorosa fica evidente, e o público aplaude
a inteligência maliciosa da resposta.
Ele conta uma piada sobre mineiros,
os velhos chavões da mineiridade e fecha os ditos com um
trocadilho novo: "Dizem que mineiro não traz felicidade"
e o CIC vem abaixo: afinal, ali está, de calça preta,
sapatos pretos, camisa de seda branca e preta, meio calvo e de
barba, o turquinho magro do início da carreira tornado
mais pesado pela indesejável crueldade dos 50 anos, tornado
mais competente pela invejável experiência dos 50
anos, manipulador, sutil, extremamente sedutor, explodindo de
talento e garra, um mineiro que durante duas horas nos conduz
ao paraíso musical que procuramos e pelo qual pagamos.
Podemos contestá-lo formalmente: há um mineiro que
traz felicidade, sim. Mas isso não é necessário,
nossos aplausos e gritos dizem tudo: 'brigada, João!
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