Entrevista CRISTOVÃO TEZZA
Ciberarte: Vários escritores já estão desenvolvendo trabalhos na Internet - Stephen King, que lançou seu livro na rede, também João Ubaldo Ribeiro ou Mário Prata. Qual a sua relação e da sua produção como escritor com a Internet?
Cristovão Tezza: A Internet é um caminho. No Brasil a distribuição e venda do livro está na pré-história. As livrarias são um horror. Normalmente o livro é caríssimo, da editora ao consumidor tem um custo da distribuição e do atravessador. Quando você compra pela Internet, fica muito mais barato, você corta esse custo. É um espaço tanto para vender, para viabilizar o objeto livro (do que as livrarias tradicionais não estão dando conta), quanto como uma nova mídia. Até uma maneira assim de ficção científica, em que você encomenda o livro e ele é impresso especialmente para você. O livro é feito sob demanda, não existe mais estoque e barateia brutalmente o custo. Acho que em pouco tempo isto deve ser realidade. Então eu não tenho medo nenhum. Acho que a Internet vai reforçar o livro em vez de destruí-lo. Primeiro, porque multiplica os pontos de venda ao infinito. Hoje se tem muito mais opção de comprar livro, e muito mais rapidamente, uma bibliografia fantástica disponível. Eu sou um grande consumidor de livro. Compro na Amazon, Submarino, Cultura... Eu freqüentemente visito esses sites. É um multiplicador, um espaço fantástico.
Ciberarte: Muitos tecnólogos dizem que o livro eletrônico irá substituir o livro impresso...
Tezza: Aí tem muita fantasia. O que se imaginava que seria o mundo de hoje em 1950, calçadas rolantes e todo aquele imaginário, se vê que tudo deu para trás. Em compensação, hoje tem coisas muito mais fantásticas, a própria Internet, o computador. Não se previa isso. O que se previa era um mundo mecânico, não um digital, a sofisticação mecânica e não a digital. O livro, no mundo todo e principalmente no Brasil, ainda é um objeto de consumo restrito. Eu não consigo imaginar que vai todo mundo ter uma tabuletinha digital no bolso. É claro que vai ter livro eletrônico, mas serão formas que estarão sendo usadas paralelamente. O livro de bolso, de fácil transporte, pode conviver perfeitamente com ele. Mas eu não me vejo lendo nessas telas.
Ciberarte: Você tem alguma pretensão de fazer algum trabalho na Internet?
Tezza: Não. Eu vejo a Internet pragmaticamente. Como escritor é um modo de divulgar o trabalho. Por exemplo, eu tenho livros na Record que estão praticamente em final de estoque e uma coisa que às vezes me passa pela cabeça é como viabilizar isto via Internet, não mais registrando livro. Fazer um site com um banco de livros de literatura brasileira, barateando a produção, sob demanda, ou mesmo mandando arquivos. Isso é uma certa fantasia, em que eu penso eventualmente. Mas não me apavoro em nada, acho que isso só pode multiplicar as possibilidades.
Ciberarte: Como é que você escreve?
Tezza: Então, curiosamente, eu escrevo à mão. Todos os meus livros eu escrevi à mão. Na verdade só teve O Fantasma da Infância que foi escrito com um XT que não tinha nem winchester, era com dois disquetes, aquele antigo Word para DOS. (Depois, claro, vou mexendo no papel, mas a primeira versão foi no computador. ) Depois voltei a escrever à mão. Eu tenho um ritmo que é de escrever 3 ou 4 parágrafos por dia e tanto faz estar com o computador ligado o dia inteiro ou não. Eu acho mais maleável o texto escrito à mão, para mexer, rever, voltar 3 páginas... Você ainda tem uma simultaneidade que o computador não dá. O computador na verdade fez renascer o pergaminho, funciona com a mesma lógica, é aquele giro e você precisa ser um expert em Word para ter a rapidez que se tem virando duas páginas do papel e ver o que escreveu lá atrás. O computador é bem menos ágil para isso, por incrível que pareça. Agora, para a formatação final é fantástico. Da segunda versão em diante eu já faço no computador, passo e aí vou mexendo.
Ciberarte: E como é o seu processo de construção de uma narrativa longa?
Tezza: É um processo bastante demorado. Leva cerca de dois anos de gestação na cabeça a idéia do livro. Eu preciso ter várias coisas. Primeiro, motivação de uma cena ou de uma situação dramática, literária, que me pegue. Minha segunda preocupação é um roteiro: preciso ter um esqueleto narrativo, mesmo que eu abandone esse esqueleto. Não consigo começar um livro sem saber onde ele vai parar. Preciso ter um final, que quase nunca dá certo, porque muda no meio do caminho, mas eu não saio da terra sem essa âncora. E, finalmente, o mais importante para começar a escrever, é um linguagem. Preciso de uma frase concreta na cabeça, eu tenho que ter um início do livro que me dê a consistência de uma linguagem. Essa linguagem me diz exatamente quem é o narrador, qual é o registro do livro, onde é que ele trabalha. Por exemplo, Uma noite em Curitiba, eu estava há um ano escrevendo até que surgiu aquele "escrevo este livro por dinheiro...". Então eu já tinha um personagem inteiro na frase. Quem diz isso já tem toda uma visão de mundo, uma maneira, uma postura com relação ao leitor, um tipo de ironia, um cinismo, exatamente o caráter do personagem inteiro ali.
E o personagem é meio Frankenstein. Ela vai tomando corpo, começa por essa linguagem e na medida em que você está escrevendo começa a ver o personagem. Esse ver é uma atitude puramente mental, porque curiosamente eu não sou um escritor descritivo com relação aos meus personagens. Eu acho graça, as pessoas lêem o Trapo e me dizem assim "gostei tanto do professor Manoel, aquele velhinho gordinho". Onde é que está escrito que ele é gordinho? E outros dizem assim "parece que vejo aquele professor aposentado, magrinho". Naturalmente que é sugestão. O leitor escreve o livro junto. E é o mesmo processo meu, eu tenho uma figura na cabeça. Mas você só passa para o leitor aqueles detalhes que são estritamente necessários. No caso, ele era careca. É o único dado da aparência física que se sabe do professor Manoel. Assim como o Trapo era cabeludo, mas não tem descrições. E todos os meus personagens têm mais ou menos isso. Na verdade é um estado mental que eu tenho na cabeça, um tipo de um temperamento, um caráter e uma linguagem. A linguagem é o fundamental, eu tenho que ter uma linguagem que revele imediatamente quem é o sujeito, e tem que ser coerente na estrutura romanesca.Ciberarte: Em Uma noite em Curitiba você usa uma narrativa epistolar, lembra Choderlos de Laclos (Relações Perigosas). É uma solução para a narrativa, é um estilo seu?
Tezza: Foi uma coisa que acabou acontecendo na minha literatura. Talvez em função primeiro da minha história pessoal. Eu fui um grande escritor de cartas, no tempo em que se escreviam cartas, hoje só se escreve e-mail, é só bilhete. Mas eu passei anos escrevendo cartas. Eu viajei muito, passei um ano na Europa. As cartas eram meus relatos, as cartas pessoais eram assim pré-literatura. Eu levava muito a sério os meus relatos. Eu gostava de escrever, gostava de trocar correspondência, com os meus amigos. Minha mulher, a Bete, tem mais de 80 cartas minhas do tempo que eu passei fora. Carta para mim foi a porta de entrada para a literatura. Não que fosse consciente, nem me passava pela cabeça, mas depois de um certo momento o gênero carta começou a entrar. Tem um outro aspecto que é a questão do narrador do séc. XX, a implosão do narrador totalitário, onisciente, que hoje não se sustenta mais, toda palavra é uma palavra relativa, uma entre outras. O discurso é anti-totalitário por excelência. O leitor sempre lê o romance com um pé atrás. Você pode ler um livro em que você não concorde nada com o narrador, e no entanto o livro seja irresistível. Você pode ler um livro de um sujeito mau-caráter, você pode ler a história de um assassino, você pode ver um policial do ponto de vista de alguém que "não presta" e no entanto você lê, porque um dos pressupostos do romance é estar avisando ao leitor: "desconfie do que está escrito aqui." Então, nesse sentido, a noção de primeira pessoa se aprofunda, não é só uma noção gramatical, como no Ligações Perigosas. Esse ponto de vista único que se apresenta é uma noção de subjetividade mesmo. E a carta tem um aspecto interessante: ela tem um leitor único, nítido, para quem se escreve. E isso dá uma estrutura muito sólida do ponto de vista romanesco. O professor Renon de Uma noite em Curitiba escreve para a Sara, e aquela imagem da Sara, o que ele queria com ela, o tipo de relação é muito nítido. E isso vai determinar grande parte da linguagem dele: ele não está escrevendo para o leitor do livro, está escrevendo para ela.
Ciberarte: E esse fato torna o livro ainda mais atraente para o leitor.
Tezza: Exatamente. Você vira um voyer, entra na intimidade de alguém.
Ciberarte: E o caso da italiana do Breve espaço entre cor e sombra?
Tezza: Ela escreve para o Tato, mas é uma construção muito pessoal. Na verdade é uma auto-análise, um processo confessional que se convencionaliza como forma literária. Não é bem uma 'carta pessoal'. As cartas do professor Renon são estritamente pessoais. Ele fala um pouco para si mesmo, tem sempre aquela pose ou aquela relação com ela, de montar sua própria imagem, de discutir as questões pessoais. No caso da italiana a coisa é mais ampla: ela só esteve com o Tato por um dia, ele é uma figura distante.
Ciberarte: A relação pai e filho está sempre presente em seus romances...
Tezza: A família é um tema poderoso. A família burguesa, para falar à la séc. 19, é um tema muito forte na literatura moderna. No meu caso, o tema família aparece em quase tudo que escrevi. Eu pertenço a uma geração extremamente problemática com relação à família, a geração 70, 68. A primeira coisa que eu fiz foi fugir de casa com 16 anos. Hoje, a geração subseqüente, dos anos 80, 90, já tem uma relação muito mais tranqüila com isso. Eu vejo com meus filhos. É mais descansado, não é aquele choque que era. A geração dos 70 foi extremamente problemática com relação à sociedade, à política, aos velhos padrões. Hoje em dia há uma homogeneidade muito maior. O mundo é extremamente mais liberal. Infinitamente mais liberal. Eu sou de 52, em 68 eu tinha 16, 17 anos. Era um choque violento e nascer para o mundo era recusar tudo.
Ciberarte: Os choques da relação pai e filho têm algo de autobiográfico?
Tezza: Bem, meu pai morreu quando eu tinha sete anos. Obviamente muitas das coisas que eu escrevo, que qualquer escritor que escreve, é autobiográfico. O escritor que disser que não tem nada de autobiográfico está mentindo, porque a grande matéria-prima do escritor é ele mesmo. Mas não autobiográfico no sentido literal do termo. Não consigo reconhecer nada no que eu escrevi que possa dizer "isso é uma estrutura autobiográfica". Essa relação não tem. Mas tem muitas coisas da vida pessoal que você acaba transformando e colocando nos livros, que transparece mesmo à revelia.
Ciberarte: E essa questão das drogas, que também é sempre uma presença nos seus romances?
Tezza: Engraçado, duas formas na história da minha vida: nos anos 60 a droga era um valor positivo na juventude, era uma libertação. Não se falava em cocaína, na época não existia, a maconha era a grande droga. Mas o que ela representava: você lia Herman Hesse, Aldous Huxley, puxava um fuminho e dizia que a utopia e o paraíso estavam logo ali, um mundo natural, o céu e o inferno, as portas da percepção, aquela idéia de que as drogas abrem a cabeça, um monte de mitos que funcionava em cima disso aí. Mas foi imaginário de uma geração. Esta foi a experiência que eu vivi muito de perto. A droga era um símbolo de contestação, era também uma utopia, a idéia de um paraíso terrestre, a idéia rousseauniana do bom selvagem, corria muito na minha geração, as leituras que a gente fazia, etc. Num segundo momento, na idade adulta, a droga é outra coisa completamente diferente. Agora a droga é a cocaína para o executivo trabalhar melhor, para ser mais rápido. Há uma ideologia extremamente individualista, a droga é o prazer pessoal, intransferível, o êxtase. É a mitologia do prazer que envolve isso aí. E, paralelamente, se tem cada vez mais forte a presença de um estado independente dentro dos estados que é a indústria da droga. Uma coisa profundamente assustadora. A questão do tráfico, o que significa do ponto de vista da institucionalização da vida civilizada, é algo assim brutal. Então, em 30 anos há uma mudança absoluta de ponto de vista com relação a este aspecto. Outro aspecto é: por que as pessoas consomem tanto? É uma vida terrível, porque quem sustenta isso tudo são os consumidores. Só existem Cali, Colômbia, os grandes traficantes, a corrupção, compra de juízes, porque tem gente, e muita gente, consumindo. Tanto que eu acho que é uma guerra perdida. Talvez, uma maturação futura para resolver esse problema seria a liberação das drogas. Se você quer vai na farmácia e compra. Agora, se você botar isso aí você é linchado em praça pública. Parece que se está estimulando, mas é justamente o contrário. Acho que um solução civilizada iria mais ou menos nesse sentido. A questão policial é complicada porque ela corrompe tudo por onde toca. Mas, claro, isso não poderia se fazer num lugar só. Já se fez na Suíça, na Holanda, e no fim acaba sendo uma concentração de pessoas do mundo inteiro que vão para lá.
Mas também na literatura tem isso. No Ensaio da paixão, ou com o próprio Trapo, a droga ainda é uma coisa meio utópica. O Trapo é intermediário, mas no Ensaio da paixão é utopia anos 60, é um livro datado, um livro daquele tempo, daquele paraíso, o pessoal naquela ilha curtindo, a idéia de utopia muito presente. O Trapo já é uma figura intermediária, já é um anos 80. Um resto de utopia pessoal, individualista (o amor dele por Rosana, o projeto pessoal, a liberação). Com o professor Renon é uma coisa completamente diferente. Aqui já é um cara fuzilado da vida. A droga é uma droga, é só isso, não tem mais nada por trás. Se bem que ele dá a volta por cima.Ciberarte: Você se considera um professor que escreve, um escritor que dá aula, ou nada disso?
Tezza: Esse é um problema complicado. Eu prefiro me ver como um escritor, puramente escritor. É que eu aprofundei demais a questão de professor, me tornei presente muito como professor, inclusive com material didático, na área de língua portuguesa, em conjunto com Carlos Alberto Faraco, e no próprio estudo de Bakhtin, de Teoria Literária. Isto tudo passou a ocupar um espaço representativo na minha vida, até como resenhista. As pessoas me convidam para escrever e o meu texto como crítico é um texto acadêmico. Eu não sou um escritor que dá palpite, tenho uma certa estrutura de análise crítica que transparece nas coisas que escrevo. Eu até gostaria de ser mais livre em relação a isso. Talvez eu chegue lá. Mudar o registro do discurso, é uma questão de realmente sintonizar um coisa e outra. De modo que eu me defino como um esquizofrênico. Eu estou exatamente agora numa fase que eu diria de crise. Estou entre dois caminhos. Tive uma ressaca da minha produção literária com o Breve Espaço... Foi um livro que me esgotou, me cansou muito, e eu sinto que estou precisando parar, parar um bom tempo - estou fazendo agora a tese de doutorado. Mas é meio assustadora a idéia de entrar de cabeça na teoria, o que pode ser também uma viagem sem volta. Estou pensando, estou com alguns planos, idéias de romance, de vez em quando esboço alguma coisa de ficção, só para manter o pé firme ali.
Ciberarte: E se você fosse escolher entre ser professor e ser escritor?
Tezza: Nenhuma dúvida de que eu queria ser escritor. Meu projeto dos 14, 15 anos, ou antes mesmo que eu soubesse escrever, era ser escritor. Isso é verdade, parece piada, mas não, era um projeto existencial mesmo. Então comecei a me mexer para isso. Mas não era aquela coisa. Eu fui um péssimo escritor de juventude, nunca fui precoce. Eu preferia ser um escritor, claro. A questão de sobrevivência para o escritor é difícil. Nesse sentido o trabalho de professor universitário é interessante. Você ganha pouco, mas ela dá uma certa condição tranqüila para trabalhar. A universidade lhe dá tempo, se você souber administrar bem. Eu consigo até produzir material didático, fazer trabalho acadêmico e escrever romance. Mas como escritor é difícil. Agora, é óbvio, se meus livros começarem a vender como os do Paulo Coelho, aí eu pedia demissão.
Ciberarte: Quais foram suas leituras de formação?
Tezza: O primeiro livro que eu li por conta própria, com 11 ou 12 anos, foi A Chave do Tamanho, do Monteiro Lobato. Aí eu li tudo do Lobato. Então virei um leitor, aquele cara que vai por conta própria pegar livro para ler. Depois, num segundo momento comecei a ler Julio Verne, lia também muito policial. Veio a literatura adulta, já nos 16 eu comecei a trabalhar em teatro, via muito teatro, comecei a ler literatura adulta caoticamente. Lia de tudo, o que pintava na mão. Depois, num terceiro momento, você começa a ter a literatura mais adulta, alguma referência de Dostoievski, num momento Faulkner, que eu li bastante, Gabriel Garcia Marques. O Cem Anos de Solidão foi um choque, foi em 68, em 70 que saiu. Eu lia muito Cortázar. Hoje se fala muito pouco dele. Eu o lia bastante, ele é meu guru. Herman Hesse, eu lia muito também. Parece que Hesse está tendo um renascimento agora, foi reeditado. O Lobo da Estepe, a leitura daquele tempo. Thomas Mann, A Montanha Mágica. A poesia, curiosamente eu li quando bem menino. Tinha uma coleção que era do meu pai, dos poetas românticos brasileiros, uns livrinhos de antologia. Eu devorei tudo. Castro Alves eu sabia de cor. Fagundes Varela, Álvares de Azevedo "se eu morresse amanhã viria ao menos fechar meus olhos ..." sabia aquilo de cor, era uma coisa fantástica. Então eu fumava meus primeiros cigarros... Depois desse primeiro momento (das antologias que Manoel Bandeira fazia, tinha uma antologia dos poetas bissestos, que eu achava ótimo, pessoas que raramente escreviam poemas) bem mais tarde eu voltei para a poesia, com os clássicos: Durmmond, Bandeira, Vinícius de Moraes, Cassiano Ricardo, que eram minhas leituras daquele tempo. E mais tarde comecei a ler mais poesia. Mas o que marcou mesmo foi a ficção. Dos nomes de que eu falei, depois Conrad, Lord Jim, outra leitura forte. Camus com O Estrangeiro; O Imoralista, de Gide. Daí vai para a frente. De vez em quando se tem uma surpresa, descobre mais coisas novas. William Golding , Thomas Bernard, que descobri há pouco tempo.
Ciberarte: Da atualidade tem algum mais querido?
Tezza: Não, não tenho mais uma leitura específica, estou procurando, acompanho bastante o romance americano contemporâneo, tenho lido algumas coisas, mas não sou mais um leitor especialista, de pegar alguém e me debruçar. Eu tenho lido muita teoria agora. Teoria da literatura e teoria da linguagem.
Ciberarte: Em relação à sua narrativa percebe-se que há sempre um tom de mistério, algo de narrativa policial...
Tezza: Tem. É uma narrativa que me atrai. Trabalhar com suspense. Num primeiro momento eu gostava muito de Agatha Christie, lia tudo do Conan Doyle, achava um barato aquilo. E depois, num segundo momento o (Georges) Simenon. Ele é fantástico, o melhor de todos.
Ciberarte: E onde aparece Florianópolis nos teus romances?
Tezza: Indiretamente em três livros. "Ensaio da paixão" tem muita coisa de Florianópolis, mas não está expresso. A metade do "Aventuras provisórias" se passa em Florianópolis, na Lagoa da Conceição. E "O fantasma da infância" se passa em Florianópolis. Eu morei dois anos lá. Tenho uma relação forte com a cidade.
Ciberarte: E Curitiba, como é trabalhar na ficção com o espaço geográfico real?
Tezza: Foi uma passagem. Meu primeiro livro A cidade inventada, o primeiro que eu ousei publicar, porque uns três eu joguei fora. Três romanções, 600 páginas. Ali não tem nenhum espaço concreto. Todos os contos se passam em cidades imaginárias, locações, ruínas, ou espaços abstratos. Não tem geografia, não se sabe onde acontece. E é uma coisa curiosa. Depois desse escrevi o Gran Circo das Américas - uma narrativa bem simples, plana - e nesse sim, já tem uma situação concreta, mas não dou nome de cidade, não dou geografia. Você sabe que é alguma cidadezinha aqui no sul do Brasil, mas não é localizada. O terrorista lírico também é numa cidade grande, mas também não digo qual é. Pode ser qualquer uma, não tem uma referência concreta, bem como no Ensaio da paixão, que é uma ilha do sul, um lugar fantástico. Foi no Trapo que eu descobri o prazer de mexer com o espaço concreto, a hora que eu botei meus personagens andando ali na praça Rui Barbosa. Um monte de problemas se resolvem. Para o tipo de literatura que eu faço (eu trabalho com registro realista), para o tipo de universo com que lido (classe média brasileira contemporânea), o tipo de mundo mental, esse aspecto de Curitiba foi uma dádiva. Minha literatura não tem nada de regionalista, mesmo porque Curitiba não é regionalista. Curitiba é uma cidade abstrata, pedaço nenhum. Eles tentam inventar que Curitiba é alguma coisa, mas não é. É um espaço urbano absolutamente descaracterizado, não tem nada. Tanto que todos os símbolos da cidade surgiram nos últimos 10 anos com o Jaime Lerner: o Ligeirinho, a Ópera de Arame, etc. Uma cidade que parece que não tem história, tem 300 anos e um logotipo moderno. É um espaço urbano, um laboratório de classe média. Então no Trapo eu descobri minha própria linguagem. Eu cresci como escritor. Uma das questões foi saber qual era a minha geografia, onde é que eu trabalhava. Depois do Trapo veio Aventuras provisórias que é Curitiba e Florianópolis, bem específicas. Então, O fantasma da infância, com espaço bem concreto, o Juliano Pavollini, Curitiba dos anos 60.
Ciberarte: Na sua juventude você tinha um grupo de com quem discutia literatura?
Tezza: A minha formação de juventude, fase da adolescência para a juventude, foi o grupo do W. Rio Apa. Ele morava aqui em Curitiba. Em 66, 67 ele montava umas peças aqui e no litoral, em Antonina. Eu me engajei com ele, então ficava conversando. Ali juntava um monte de gente que lidava com literatura, que tinha projetos culturais, projetos revolucionários. Por exemplo, na primeira peça da Denise Stoklos eu fui iluminador. Era o "Circo na Lua, Lama na Rua", uma peça de 68, e eu trabalhei nesse grupo. Todo o pessoal ali era ligado, cheio de idéias, todo mundo artista, todo mundo poeta, tinha uma efervescência. Curitiba teve um momento cultural muito rico no final dos anos 60. Muito se fez aqui, principalmente na área de teatro. Tinha o Ari Pára-Raio, a própria Denise Stoklos, o Manoel Carlos Karam ( o Karam ainda está aí mas não faz mais teatro). Foi uma época, do final dos 60 até 71, 72, depois foi morrendo. Mas se tinha aqui um clima cultural excelente, de atividades. Noites de poesia, declamações, o DCE (Diretório Central do Estudantes) promovia. O pessoal ia lá declamar poemas, fazer discurso político, falar mal da ditadura. E isso foi parte da minha formação. Então, claro, eu conversava muito sobre tudo isso aí com amigos, e muito com o Rio Apa e com o pessoal ligado ao grupo. Rio Apa era um escritor muito conhecido na época. Tinha acabado de publicar A Revolução dos Homens pela editora José Olympio, que era uma editora importante, depois publicou No Mar das Vítimas, pela Brasiliense. Então ele congregava um monte de gente interessada em literatura. E eu freqüentava muito a Boca Maldita aqui em Curitiba, e tinha muita gente boa, até o próprio Dalton Trevisan, no tempo em que ele ainda falava com as pessoas. Conheci o Dalton lá na Boca Maldita. Ele ia tomar cafezinho e conversar com o Aristides Vinholes, que era o livreiro, o Valmor Marcelino, o Jamil Snege, que foi meu mestre. O Jamil lia as coisas que eu escrevia, com extrema paciência. Aliás, um belíssimo escritor. O Fábio Campana, o Nego Pessoa (Carlos Alberto Pessoa). Era uma juventude efervescente. Eu tinha uns 15 ou 16 anos e ouvia esse povo conversando, ia lá, era arroz de festa. Com o bolso abarrotado de poemas, enchendo o saco de todo mundo com minhas obras-primas. Minha formação é desse tempo, dessa época. De um lado esse pessoal da Boca Maldita, de Curitiba mesmo, que deu um tom, principalmente o Jamil. Eu o ouvia muito, prestava muita atenção ao que ele dizia. E por outro lado o Rio Apa, mais do lado performático, do teatro, da questão existencial, utópica. Apa tem o lado messiânico, que agora assumiu de vez. Naquele tempo ele ainda contrabalançava o messianismo com a literatura. Essa é basicamente a minha formação. Depois se vai ficando sozinho. À medida que se vai amadurecendo como escritor, talvez muito por Curitiba e pelo espaço cultural daqui ter se desintegrado. Curitiba ficou absolutamente sem expressão nenhuma. Durante anos e anos a fio não tinha nada aqui. Somente o Dalton Trevisan e o Paulo Leminski. O primeiro escritor depois dos dois que furou o bloqueio editorial fui eu, nos anos 80, quando fui publicado pela Brasiliense e depois pela Record. Agora não, agora está cheio de nomes, que é o pessoal desse tempo que publica. Mas isso aqui era um deserto. Teve uma época que a gente tentou fazer duas editoras: a Coo-Editora, que foram 12 sócios, publicaram 12 livros e foram à falência. A gente se mexia para botar os livros em circulação. Claro que nenhum desses livros conseguiu sair de Curitiba. Nem nas livrarias daqui você conseguia botar os livros direito, um negócio terrível. E depois num projeto mais amplo fui sócio do Roberto Gomes na Criar Edições. Era um projeto mais ambicioso. Acabei vendendo minha parte para ele e acho que ele já fechou a editora. Mas chegou a editar a Helena Colody. Teve uma certa presença. Publicou até a primeira edição do Ensaio da paixão, na época em co-edição com a Fundação Catarinense de Cultura. Tirando isso não tinha nada. Agora está começando a renascer. Ela enganou muito por fatores como o Festival de Teatro, toda essa coisa extremamente importante, mas que era algo que acampa aqui, como Fórmula 1, e depois vai todo mundo embora no outro dia. Poucas raízes. E na literatura vai se ficando meio sozinho, é um trabalho solitário. Uma questão complicada. Às vezes o pessoal manda e-mail, o pessoal jovem, querendo saber o que fazer, onde buscar orientação para escrever, tem uma certa preocupação. O que é engraçado também. No meu tempo a geração de artistas era orgulhosa demais para achar que alguém pudesse ensinar alguma coisa. Já sabia tudo, a relação da coisa era contra tudo, então não tinha mestres. E hoje é uma postura bem mais profissional e pragmática. Tem oficinas de texto, mudou o tipo de relação. Eu acho bem mais tranqüilo hoje, é uma relação mais saudável, menos angustiante, menos neurótica que no meu tempo.
Ciberarte: Você não acha a juventude de hoje um pouco apática? As gerações passadas não eram mais ousadas?
Tezza: É muito complicado fazer uma análise, tem várias variáveis. Nos anos 60 e 70 tinha um mundo emburrecido pela guerra fria, tinha o bem e o mal, o certo e o errado, você não tinha muitas opções. No Brasil, a implantação de uma ditadura que facilitava as posturas éticas possíveis. Você tinha inimigos muito nítidos, e isso mudou. De repente você sai de uma situação dessas, em que não tinha acerto, tinha que ser do contra mesmo (senão era um lacaio da ditadura. E era mais ou menos isso mesmo, não tem outro termo), para um situação extremamente complexa, da multiplicidade de opiniões e diferenças da própria estrutura do estado brasileiro, passando de um mundo ainda predominantemente agrário para um mundo predominantemente urbano. Tem modificações fantásticas de comportamento, de visões de mundo e de cultura, que a gente ainda não sabe avaliar. Depois, a avaliação que a gente faz, por exemplo da questão do tempo de estudo da minha geração (eu estudei em colégio público de alta qualidade): era de alta qualidade mas era para uma elite. Tinha pouquíssima gente completando o 2o grau. Era mais sofisticado, mas para bem menos gente. Hoje se tem uma democratização brutal. Veja a quantidade de alunos que completa o 2o grau e está entrando na faculdade. Você tem uma massa de gente que está tendo acesso a um tipo de informação que no meu tempo nem pensar. Essa é outra variável. O Estado não foi capaz de dar conta desse aumento de gente. O ensino desabou. A qualidade do ensino é menor, mas não é tão ruim quanto se diz. Se você pensar no simples fato do número de pessoas alfabetizadas a mais, já é uma conquista fantástica. Imaginar que o professor ganha um salário de fome no Brasil inteiro e as pessoas continuam aprendendo a ler. É uma coisa simplesmente fantástica. Tem que botar a figura do professor lá em cima. É o herói nacional. Tão injustiçado, mas é o herói nacional. Tudo conspira contra, entretanto as pessoas continuam sendo alfabetizadas. Sempre tem, em qualquer canto que você vai, uma escolinha com alguém lá no quadro negro ensinando alguma coisa. E fora da palavra escrita não tem salvação,é a barbárie mesmo. Este é outro aspecto para variar. Depois, uma cultura individualista mesmo. A cultura mudou. O sonho da utopia, que tinha esse lado legal da busca da autenticidade, aquela coisa verdadeira, a questão da insubmissão; mas tinha também um lado messiânico, que tem uma componente irracional. Eram, no fundo, idéias totalitárias. A utopia é uma idéia totalitária. Você imagina que tem o paraíso terrestre submetido em geral a uma só voz. É uma certa incapacidade de lidar com a diferença. Eu resisto à idéia, ao chavão de dizer que hoje é uma barbaridade, que a juventude está perdida. Eu não sei se a gente tem condições de dizer isso tranqüilamente sem pensar em todas essa variáveis, ver o que está sendo melhor hoje ou o que pode ser.
Ciberarte: O que é utopia hoje?
Tezza: Utopia é você comprar um Mercedes Benz, um apartamento de 500 m2, ter cinco computadores em casa, 300 celulares, tv a cabo, parabólica, poder freqüentar o shopping center. Utopia passa por uma questão de bem-estar, que é uma coisa horrível, precisa ter um antídoto para isso. Agora, utopia, no meu tempo, eu lembro que meu cunhado estocava fuzis no teto do consultório de dentista dele porque queria derrubar o governo, lá no sudeste do Paraná. Foi preso e tudo. Ele estava com uma guerrilha e ia derrubar o governo, isso junto com outras explosões que teve no Brasil todo. Essa era a utopia. A pessoa botava a sua vida inteira em cima de um projeto nacional de salvação, que se desse certo ia ser alguma coisa como Khmer Vermelho. Eu estou caricaturizando um pouco, mas eram idéias, porque as opções eram mais ou menos autoritárias. É curioso que, por exemplo, Che Guevara hoje é um ícone pop. É uma coisa impressionante como foi consumido. E ele era um terror. Era considerado o mal em pessoa, aquela coisa do guerrilheiro. Uma vez correu um boato de que ele teria passado por Curitiba, 75 ou 76. Era uma coisa assustadora, exército para um lado e para outro para matar o "monstro guerrilheiro". Hoje ele é um ícone, um Mickey Mouse da esquerda. É engraçado.
Ciberarte: Você falou dos artistas do seu tempo de juventude e dos de hoje, que logo se preocupam em como entrar no mercado. Há uma grande diferença?
Tezza: A primeira pergunta que o pessoal que me escreve faz é "como é que faz para publicar um livro?" Com quatro poemas já está pensando em publicar um livro. É uma relação engraçada, bem mais pragmática. O artista perdeu toda a aura; aliás, já vinha perdendo desde o século passado, aquela figura do artista como o iluminado da sociedade. Ela tem sobrevida nos anos 60 porque vinculou com a idéia de transformação social. Teve importância fantástica no fim da guerra do Vietnã, todo o movimento hippie. Hoje não, perdeu a aura. A própria literatura tem que se perguntar "Mas alguém mais quer ler livro? Tem algum interesse?"
Ciberarte: O consumismo destrói a arte?
Tezza: Depende do artista. Na Literatura, escrever para ser lido, para ser sucesso, é uma coisa que pode existir ( e pode naturalmente corromper o trabalho, em função disso). No entanto, não é uma coisa fácil. As pessoas falam do Paulo Coelho, que escreve só o que o público quer ler, mas tem 10 milhões de candidatos a Paulo Coelho e só ele deu certo. É um tipo de tcham que o sujeito tem que ter para dar conta disso. Agora, como visão de mundo mudou. Eu sou de uma geração em que se tinha uma idéia, uma aura sobre a atividade artística como coisa superior, libertária, transformadora, utópica, comportamental. O artista não é um criador de objetos, ele é alguém que vive de uma forma diferente. Isso é bem da minha geração. E há traços disso ainda hoje. A Denise Stoklos é um exemplo. Ela é legitimamente um comportamento de artista dos anos 60.
Ciberarte: Todo artista é um pouco louco?
Tezza: Tem um aspecto meio monstruoso na atividade artística, porque num primeiro momento você acha que tem controle sobre essa atividade, mas escrevendo um livro, ao longo dos anos você vai sendo modificado pelo que escreve. Um romance, por exemplo, você leva dois anos para escrever, são muitas horas sozinho. Acho que nenhuma outra atividade deixa a pessoa tão sozinha quanto escrever um livro, porque em qualquer outra atividade você está vendo pessoas. Dando aula, por exemplo, você está o tempo todo vendo pessoas. O sujeito que escreve não, ele fica muito tempo sozinho. As horas que fica escrevendo são estatisticamente excessivas. E acho que por causa dessa perda de contato todo artista é meio anti-social. Ele vai ficando meio esquisito. E o próprio ato de escrever, trabalhar com a palavra, mexe com a questão da construção da consciência, com a articulação do mundo. Isso não é uma coisa que se faz impunemente. É como mexer com lixo tóxico sem máscara de proteção. Tudo isso vai mexendo com a tua cabeça. No final de dois anos em um livro de 200 páginas você já não é mais a mesma pessoa. Você é transformado pelo livro também, ele passa a lhe conduzir. Por isso há temas recorrentes. No próximo livro você vai aprofundar, vai se tornando uma estrada obsessiva. E essa solidão é algo pessoalmente transformador. Daí porque você não consegue mais parar, sem isso você não é mais ninguém. A questão é: vou parar de escrever e vou fazer o quê? Não sei fazer mais nada...