Simples ou simplista?
por
Marcelo Nóbrega

Em 20 anos de carreira, o U2 passou de mais uma banda para uma das referências cruciais do rock contemporâneo. Eleito pela crítica o ícone do gênero nos anos 80, lado a lado com The Smiths, o quarteto irlandês manteve sua influência com personalidade, incorporando melodias simples e simultaneamente densas, agregadas ao lirismo dos versos de Bono Vox.

O U2 está diferente. All that you can't leave behind (ATYCLB), 10º disco com conteúdo inédito da banda, mostra a pasteurização que se vê em bandas do mainstream, misturado a uma crise da meia idade, refletida em letras vagas e sem conteúdo; cansaço da "síndrome de camaleão" _ a recriação mágica que iluminava as músicas, mantendo a coesão criativa. O título trespassa a filosofia do projeto: tudo o que ficou para trás, recuperado.

Em todo o típico falatório antecedente ao disco, o U2 demonstrou estar cansado do status de megabanda. A Popmart, turnê do último disco, levou 3 longos anos em digressões pelos quatro cantos do mundo: de Sarajevo a Dublin, passando pelo Brasil. O maior telão do mundo, a maior arrecadação do ano, a maior cobertura pela mídia.
"O público quer algo verdadeiro. Estamos completamente abertos, entregues, nesse disco". Esperava-se um disco de rock, longe das camadas eletrônicas de Pop, ou do experimentalismo sônico de Achtung Baby. Até a volta de Brian Eno e Daniel Lanois, produtores responsáveis por grandes sucessos do passado indicavam isso. A resposta foi um disco instável, mostrando sinais de cansaço autoral. Poderia estar nos braços e bocas de um Bon Jovi ou Oasis, ou qualquer "pop band" que brilhe na Billboard.

O álbum começa bem com Beautiful Day, o melhor primeiro single da banda em algum tempo - Numb (Zooropa) e Discotheque (Pop), haviam decepcionado em seus lançamentos. Em comum, os 3 não denunciam a qualidade do disco, para bom ou mal. Com Beautiful Day volta o coro épico e guitarras poderosas de Edge, costuradas pela (ainda) melhor cozinha do rock atual - Larry Mullen na bateria e o baixo inspirado de Adam Clayton. Mas já anuncia o vácuo poético que impera no disco.

Stuck in a moment you can't get out of, a segunda música, entrou para a galeria de mitos sobre o U2 por causa de uma aposta feita entre Brian Eno, produtor do disco (junto com Daniel Lanois) e Bono. Eno apostou £100 como esse seria o maior single de todos os tempos da banda. A música é a melhor definição de uma balada, e o tédio de seus 4 minutos e meio é interrompido na primeira estrofe (abaixo), e no final empolgante:

I´m just trying to find a decent melody
a song that i can sing, in my own company

É um recado. A busca pela canção mais simples, popular. Quase uma justificativa para o que vem depois.

Elevation é a música mais pesada e dançante do disco. Guitarras roucas e vocais marciais fazem de Bono quase um rapper. Uma das melhores do disco.

Walk On, a quarta faixa, foi feita para Aung San Sun Kyi, em prisão domiciliar em Burma desde 89. Outra canção brilhante, onde a simplicidade dos teclados de Edge marca o retorno aos tempos de New Year's Day.

Kite, a seguinte, é a melhor música de ATYCLB e definitiva para entender o disco. Bono leva suas duas filhas para um terreno atrás da casa com a missão paterna de empinar uma pipa. Na primeira tentativa, nada feito, e quase destroi o papagaio. Da segunda vez, um vento leva a pipa embora. Bono se deixa levar junto, observando o vôo rebelde e, ao acordar, encontra-se sozinho - suas filhas também foram embora.
Pela primeira vez ele se mostra pai, quarentão, Paul Hewson. E tudo está na música, destinada a entrar na galeria das melhores composições da banda.

In a little while chega para segurar o disco lá em cima, dançando no ar. E consegue; uma guitarra seca e vocais dignos da Motown mostram, de forma positiva, a banda madura. Sem a facilidade de antes, Bono canta rouco sobre um amor que espera, ou que já aguardou tempo demais.

E é o fim da melhor parte do disco. A faixa seguinte, Wild Honey é uma decepção, completamente vazia. Bono tenta levantar a melodia arrastada com vocais emocionados, mas esbarra na carência da música em si. Nasceu morta. Peace on Earth é mais uma música política da banda, dessa vez cansativa, sem o punch de Please ou Sunday Bloody Sunday. Parece ter sido feita por encomenda para o Papa João Paulo II...

When i look at the world pode ser a tempestade depois da bonança. Começa bem, e, evitando a barriga do meio, termina melhor ainda. É uma boa música para apimentar o final do disco.

New York, mais uma introspecção de Bono, conta suas impressões sobre a Big Apple. Bruta, deixa a impressão que precisaria de mais trabalho para ficar madura.

Grace, a última música, canta uma mulher, a Virgem Maria e fecha com melancolia o álbum, deixando um gosto amargo de "era só isso"? Falta coesão em ATYCLB. Enquanto a primeira metade do disco daria um ótimo EP, enxuto e rico de referências positivas ao passado da banda, o resto é incerto, cheio de altos e baixos.

ATYCLB é um disco de singles. Todas as canções são radiofônicas, e é bem possível se tornar em breve o disco mais vendido da banda. É um álbum do vocalista, Bono, onde os três músicos são coadjuvantes. Suas incursões políticas e a evidente "midlife crisis" dominam os 51 minutos, amarrando o que poderia ser um ótimo disco de rock, o verdadeiro triunfo da simplicidade em meio às tentativas frustradas do mainstream.