CARTOLA: MÃOS DE MECÂNICO, ALMA DE POETA
por Regina Carvalho
Não se vá, a partir do título, considerar que há algum preconceito social embutido nele. Pensemos nas mãos de mecânico como simbólicas de todos os empregos por que Cartola passou, empregos que estavam em contradição com sua alma sensível, poética, que lhe possibilitou a autoria de alguns dos sambas mais comoventemente belos da Música Popular Brasileira. Quem não se derrete todo ao ouvir As rosas não falam, sua canção predileta, pela qual gostaria de ser lembrado? (Na verdade a preferência de Cartola é móvel : ela muda conforme o dia e a entrevista. Mas essa é a mais comum).
Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão enfim
Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar para mim
Queixo-me às rosas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai
Devias vir para ver os meu olhos tristonhos
E quem sabe sonhavas meus sonhos por fim
Há um aspecto simbólico na rosa, em seu próprio uso repetido até na literatura erudita, que a tornam extremamente significativa, aqui. Citemos dois exemplos, talvez os mais conhecidos. A Julieta de Shakespeare vai dizer para seu Romeu, cujo sobrenome é Montechio, o sobrenome do inimigo: O que chamamos de rosa, com outro nome, exalaria o mesmo perfume tão agradável; e assim, Romeu, se não se chamasse Romeu, conservaria essa cara perfeição que possui sem o título." E o outro exemplo é o verso de Gertrude Stein, poeta modernista americana: uma rosa é uma rosa é uma rosa , recusa em definir aquilo que não precisa de definição, por ser perfeito em sua simples e evidente nomenclatura. A tautologia do verso vai cumprir este papel com eficácia.
Popularmente, as rosas são usadas como elemento de comunicação amorosa, sendo a mensagem mais conhecida o uso da rosa vermelha - também a mais perfumada - como significativa da paixão mais ardente. Simples, também, e também eficiente, nos versos de seu Angenor, vulgo Cartola, onde vai se dar a mudança do eixo da origem: o perfume da flor é originário da amada, e não o contrário, como se possa pensar. Um galanteio, na verdade apenas um galanteio, mas funciona em graça e beleza. A esta simples eficácia poética se une a melodia irreprochável, e fez-se uma das mais belas composições da MPB. Os curtidores da MPB vão cruzá-la com A Flor e o Espinho, composição do seu contemporâneo Nélson Cavaquinho, que contém os dois versos mais bonitos de nossa música: Tire seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com minha dor e pode-se criara uma espécie de mística da rosa, o perfeito símbolo do amor, embora não do amor perfeito, sem intenção de trocadilho (ou com?).
E quem de nós, amantes de MPB, já não se desvencilhou de um amor que acabava dedicando-lhe Acontece?
Esquece o nosso amor vê se esquece
Porque tudo no mundo acontece
E acontece que já não sei mais amar
Vais chorar vais sofrer
E você não merece
Mas isso acontece
Acontece que meu coração ficou frio
E nosso ninho de amor está vazio
Se eu ainda pudesse fingir que te amo
Ai se eu pudesse
Mas não quero, não posso fazê-lo
Isso não acontece
Gravada por Gal Costa em Gal Fa-tal, essa canção atingiu um nível de sentimento e perfeição poucas vezes igualados em nosso cancioneiro. Pois é isso que há de importante na obra de Cartola, com ou sem parceria: a maestria com que administra as noções de música e de letra sem ter noção do erudito, trabalhando apenas os elementos que estão ao alcance da maior parte da população.
Em Acontece isso é evidente pela mudança do eixo semântico do termo, uma espécie de simplificação dele. Em porque tudo no mundo acontece, verso em que há sua primeira ocorrência , o verbo tem um sentido ampliado pela ideologia fatalista (estava escrito!, dizem os árabes, no livro do destino) que adquirimos, no universo ibérico, pelo contato de quase 800 anos com a cultura árabe. E no fecho o verbo volta ao sentido simples de ocorrer, esse estreitamento semântico dando conta do final do romance, do fim do amor, declarado porque é assim que tem que ser, por respeito ao outro e a si mesmo. Singelo, respeitoso, ético.
Dele, do compositor, disse Drummond, em uma de suas crônicas: alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida."
Pois um autor de tal prestígio levou uma vida de penúria e sacrifícios, até ser resgatado de um emprego de lavador de carros pelo inesquecível Sérgio Porto - Stanislaw Ponte Preta, que conseguiu conduzi-lo para a vida artística, reparando uma injustiça até então perpetrada pela vida e pelo pouco caso . Cartola sempre sonhara com uma casinha de material, mas só oito anos antes de sua morte pôde levar sua amada Zica para a casa própria. Boêmio, beberrão, sempre de óculos escuros, afável, tolerante, é descrito por Sérgio Cabral como um lorde cheio de finesse: "Se a vida maltratou-o, notem como ele sempre respondeu educadamente a ela."
A vida de boêmio causou-lhe uma decadência física mais rápida, e ele, da mesma forma magistral com que o fez Nelson Cavaquinho, cantou a vida e sua aprendizagem. Nelson é amargo muitas vezes; Cartola, jamais. E dá conselhos para a mulher amada com a consciência de quem já sabe tudo, de quem se baseia em experiências duras, naquela que é sua segunda canção predileta, O mundo é um moinho.
Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção querida
Embora saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
E em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor
Preste atenção o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos mais mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida, de cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés.
Gravada por Cazuza, que respeitou seu formato original, esta música acabou trazendo o compositor de Mangueira para o convívio de gerações que, sem isso, talvez não viessem a conhecê-lo. Retomar Cartola na própria voz de Cartola, porém, é beber da fonte original. Há vários cds à disposição dos interessados, trazendo suas composições mais importantes. E podemos despedir-nos dele com a canção que ele fez, junto com Dalmo Castello, para sua amada Estação Primeira de Mangueira:
Verde que te quero rosa é a Mangueira
Rosa que te quero verde é a Mangueira
Não é um ato antropofágico bonito, popular e bem brasileiro, para os versos imortais de García Lorca: verde que te quiero verde/ verdes vientos, verdes ramas?
CDs de Cartola:
O melhor do mestre Cartola. Seleção de um admirador paulista. 1999.
Cartola. série Aplauso. BMG/RCA, 1995.
Cartola. Marcus Pereira, s/d.
Cartola - Documento Inédito. Cia de Áudio. Gravação original de 79, remasterizada em 95.