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Literatura Catarinense -
em busca da existência
por Fábio Soares
ilustrações Sigval Schaitel
A primeira tarefa que se impõe, quando procuramos desvendar a existência ou não de uma literatura catarinense, é a definição de critérios. Quais os critérios que podem definir uma literatura catarinense? Critérios formais de texto? Fronteiras geográficas? Existência de uma tradição literária, de correntes? Existe um debate literário que se restringe aos limites do estado e confere à literatura daqui uma identidade coletiva?
Todas essas perguntas correm o risco de se perderem se não abordamos a questão sob um viés historiográfico e, mais ainda, sociológico, político, cultural e econômico. É certo que existe uma literatura lida em Santa Catarina. Existe uma literatura produzida em Santa Catarina. Existem autores nascidos em Santa Catarina que produzem literatura, vivam eles no estado ou não. Mas é um engano tomarmos estes três aspectos, meramente formais, para compor uma Literatura Catarinense. Aspectos meramente geográficos compõe apenas uma das dimensões do problema e prova apenas que existe uma literatura em Santa Catarina. Parece-me, no entanto, que ao assumirmos uma literatura catarinense, estamos atrás de um pouco mais. O que é esse pouco mais?
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A sociedade, longe de ser uma massa uniforme, é composta por grupos em constante luta entre si, e dominada por um sistema de classes. A literatura, assim como a linguagem em geral, não está imune a essa luta, e comumente podemos notar que junto com a ascensão social de determinado grupo ou categoria, ascende também uma forma linguística e artística, visões de mundo, ideologias que se estendem em todos os campos na tentativa de dominação.
Por que esse prólogo dramático? Ora, aquele que se propõe a estudar a literatura, sem levar em conta o conflito social e ideológico que a mesma carrega, corre o risco certeiro de ter seus olhos cegados. Sem isso, resta apenas uma decisão formalista e arbitrária de critérios textuais e com isso, para limpar os horizontes do pesquisador que, cego, se vê inundado de manifestações literárias infinitas, acabará o próprio pesquisador se rendendo ao filtro ideológico, caracterizando como "culta" e "de qualidade" apenas a literatura produzido pelo grupo que domina a sociedade de classes. À literatura das classes inferiores, caberá a lâmina dura e censora do rigor literário, barrando sua entrada no cânone. À literatura das classes altas, aquela vista grossa e erros desapercebidos, tudo em nome de se afirmar os autores locais contra a tirania da cultura de fora.
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o grande erro entre escritores locais ainda é a falta de ousadia
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O grande erro entre escritores locais ainda é a falta de ousadia e conversas do tipo: "temos que nos ajudar, para não termos nossa cultura invadida!", ouvidas em solenes reuniões de escritores, tão semelhantes aos chás de senhoras. Em seguida a isso, correm os escritores a lançar seus livros por conta própria, preocupados sempre em seguir os critérios de uma cultura de fora, como forma de provar que sua cultura se equipara àquela.
Uma grande sucessão de erros. Primeiro, uma literatura catarinense que tente formar uma identidade única, apagando as diferenças entre classes e grupos, será sempre uma literatura imposta por um classe dominante que almeja o patamar de culta. Segundo, uma literatura catarinense autêntica, deve partir de pressupostos e critérios criados por ela mesma, estabelecidos através de uma, ou melhor, várias tradições e de um debate literário rico. Para isso, para o debate, é preciso que haja qualidade nas obras locais e, também, que sejam lidas. Não se pode, definitivamente, chamar de literatura uma lista gigantesca de obras publicadas, com tiragens de mil exemplares, que não chegam a alcançar sequer uma cifra mínima de leitores, ficando a maior parte dos livros empilhados em estoques. Só há literatura quando existe a leitura das obras.
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Bem, começamos a avançar no sentido de encontrarmos critérios. Ao compararmos a sociedade com a literatura, vemos que a literatura dita catarinense de hoje vem basicamente de duas fontes: um burguesia urbana, concentrada no litoral, e uma série de iniciativas dispersas espalhadas pelo estado, refletindo a ascensão econômica de suas regiões . É preciso analisar, de fato, os grupos que compõe nosso extrato social, para só então começarmos a compreender a literatura. Novas perguntas surgem, e estas sim, são importantes na definição de um literatura local e em um senso de identidade própria, ao contrário de métodos meramente formalistas: existe uma literatura de mulheres no estado? uma literatura camponesa? uma literatura oral transmitida em fazendas e entre famílias? uma literatura negra? uma literatura urbana? uma literatura na qual a burguesia afirme seu projeto? uma literatura que se alimente de si mesma, em contraposição a uma literatura que busca que equiparar com outras literaturas? uma literatura de trabalhadores?
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Certamente que existem essas manifestações, e é tão somente porque o foco literário ideologicamente está voltado para a classe dominante que não podemos perceber diariamente essas manifestações que nos cercam. E é tão somente porque não é interesse de uma classe dominante que surja uma cultura popular de fato, que somos diariamente cercados por uma literatura artificial que sufoca o surgimento de outras. É por estarmos contaminados pela ideologia de mercado, que não podemos ver o surgimento da literatura de populações que vivem à margem da economia. É por termos pesquisadores despreparados pra lidar com a questão ideológica, que se deixa de perceber e estimular a cultura popular a florescer.
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quem cria e vive a cultura é o povo, não intelectuais em salas distantes
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Porque falo agora em uma cultura popular? Ora, quem cria e vive a cultura é o povo, não intelectuais em salas distantes, que escrevem entre um emprego e outro. Não existe um estado de Santa Catarina sem o povo que o habita, e que deve ser levado em conta para que ele não seja afastado de sua própria cultura, assim como já é afastado pela economia do controle de sua própria vida. E não estou falando de bilros, peixes, nem nada desse tipo. Não se deve ser bairrista e se ater aos objetos ao redor, mas sim buscar a universalidade, como ocorre por exemplo em Cruz e Sousa.
Isso porque nem toquei na questão da língua! Se o estado fala pelo menos três línguas, literatura catarinense tem que ser em português por que?
Uma vez que todas essas perguntas tenham sido respondidas, e todas essas possíveis tradições analisadas, só então poderemos começar a pensar em descobrir uma literatura catarinense. Sem isso, teremos uma literatura longe, distante da realidade, que ou tenta representá-la como recortes que se sucedem no tempo, ou figuras de papel presas num cercado de terra, sem explicar nem entender a relação que cada elemento tem entre si, sendo, no fim das contas, uma literatura sem sentido.
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